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Letícia Eça

O Papel da Biologia Molecular no Entendimento do Trypanosoma cruzi

O Trypanosoma cruzi (T. cruzi) é um protozoário flagelado responsável por causar uma das principais doenças que afetam, principalmente, a América Latina: a doença de Chagas. Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde e a Organização Mundial da Saúde, “é uma doença endêmica em 21 países da Região das Américas, mas as migrações de pessoas infectadas podem levar a doença a países não endêmicos da Região e do mundo”. Embora seja um problema de saúde pública significativo na América Latina, a doença também tem se espalhado para outras regiões devido à migração, tornando-se uma preocupação global.


A biologia molecular vem sendo utilizada para compreender melhor a bioquímica do T. cruzi, principalmente no Brasil e na Argentina. Com projetos de genoma parasitário já sendo iniciados na década de 90, a possibilidade de realizar o mesmo para o protozoário não parecia tão distante. Em 2017, foi finalizado o projeto de sequenciamento do caramujo transmissor da esquistossomose Schistosoma Mansoni, dessa forma, facilita-se o desenvolvimento de uma vacina para combater a doença. Segundo a Organização Mundial de Saúde , "a esquistossomose afeta quase 240 milhões de pessoas no mundo todo, e mais de 700 milhões de pessoas vivem em áreas endêmicas".


Entre as técnicas que integram a biologia molecular, destaca-se o diagnóstico molecular, que envolve métodos como a Reação em Cadeia da Polimerase (PCR), sequenciamento de DNA, e CRISPR/Cas9, entre outros. Uma de suas principais aplicações é a identificação do material genético de patógenos, com foco, neste caso, no T. cruzi.


Como as técnicas modernas de biologia molecular têm sido aplicadas para entender os mecanismos biológicos e patogênicos do Trypanosoma cruzi, e como isso pode impactar o desenvolvimento de novos tratamentos ou diagnósticos?


Características do parasita


  1. Morfologia 


O T. cruzi possui três formas morfológicas que variam de acordo com seu estágio de vida: tripomastigota, amastigota e epimastigota. Cada variação possui um determinado formato e nível de infecção.


Figura 1: Epimastigota em microscopia eletrônica (Fonte: Rocha, 2010)
  1. Variabilidade genética

A variabilidade genética da população do T. cruzi já foi demonstrada repetidas vezes por meio padrões observados em eletroforeses enzimáticas e variações do cinetoplasto (kDNA), que consiste em uma região mitocondrial específica responsável pela energia para motilidade do flagelo. A diversidade genética do parasita é um dos fatores que tornam o desenvolvimento de medicamentos eficazes mais complexo. Essa variabilidade genética pode ser atribuída a processos como: 


Mutação: alterações no DNA e kDNA devido a falhas na replicação ou fatores ambientais.

Recombinação: processos de misturas entre os genes durante a reprodução.


  1. Classificação genética 


A classificação genética do T. cruzi é feita em seis linhagens, de TcI até TcVI. 


TcI: encontrado em ciclos silvestres.

TcII: mais relacionado aos casos humanos da doença de Chagas.

TcIII e TcIV: associados a mamíferos silvestres.

TcV e TcVI: identificados em mamíferos primatas não humanos.


Por mais que a literatura sobre o T. cruzi e a doença de Chagas seja extensa, ainda não se é possível traçar a relação verdadeira entre a variabilidade genética do protozoário e a forma clínica da doença. Acredita-se que novos estudos devam focar em outros marcadores genéticos no núcleo genômico ou no kDNA para caracterizar de maneira mais certeira o papel do T. cruzi na patogênese da doença de Chagas. 


Ferramentas de Biologia Molecular Aplicadas ao Estudo do Parasita 


  1. Sequenciamento de DNA


O sequenciamento de DNA é uma técnica utilizada para determinar a sequência exata de nucleotídeos em uma molécula de DNA, o qual é formado por bases nitrogenadas, pentose (grupo fosfato) e desoxirribose. A partir dessa técnica, é possível conhecer a ordem das bases nitrogenadas e, assim, compreender a construção e estrutura celular. 


O sequenciamento genômico do T. cruzi foi publicado em 2005, a partir do clone CL Brener do grupo TcVI, possibilitou a análise de 55 milhões de pares de bases, sendo 50% codificantes. Esse sequenciamento foi fundamental para compreender melhor os genes essenciais para a sobrevivência do parasita, assim como àqueles de resistência a medicamentos.

 

  1. CRISPR/Cas9


A recente técnica CRISPR/Cas9 (Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas) tem o poder de editar sequências de DNA localizadas em qualquer região do genoma. 


Figura 2: Protocolo para realização de CRISPR/Cas9 em no T. cruzi

O sistema consiste em duas moléculas:


Cas9: uma enzima responsável por atuar como “tesoura molecular” na sequência determinada.


RNA guia (gRNA): um pequeno pedaço de sequência de RNA (cerca de 20 nucleotídeos) que atua como “guia” para a Cas9.


A grande vantagem dessa técnica se dá por três aspectos: precisão, rapidez e aplicação diversa. Por meio de projeções, é possível prever com exatidão o local desejado para que o “corte” seja feito, dessa forma, minimizando as possibilidades de erro e locais fora do alvo. Além disso, é uma técnica mais barata que outras utilizadas anteriormente e pode ser aplicada em plantas, bactérias, protozoários e outros. 


A técnica, quando usada em estudos para o T. cruzi, se mostra promissora. Entre seus vários auxílios para o avanço de estudos sobre o patógeno, estão:


  • Desativação de genes específicos para avaliar sua função no T. cruzi, como àqueles envolvidos na patogenicidade, evasão do sistema imunológico e resistência a medicamentos.

  • Eliminar genes que codificam proteínas essenciais para o parasita, ajudando no desenvolvimento de novas quimioterapias para a doença.

  • Edição de genes responsáveis pela interação do parasita com o sistema imunológico, possibilitando estudos sobre o mecanismo de escape do parasita.


  1. Transcriptômica  


A transcriptômica consiste no conjunto da análise da expressão gênica de um organismo sob uma condição específica ou na comparação de diferentes condições.


  1. RNA-Seq e PCR Quantitativo em Tempo Real (qPCR)


O sequenciamento de mRNAs, RNAs não codificantes e pequenos RNAs possibilitam uma melhor compreensão da expressão gênica do parasita. A partir do uso do qPCR para validar os resultados obtidos, é possível a análise da expressão gênica em cada estágio. 


  1. Proteômica 


A proteômica consiste no estudo em larga escala da expressão proteica e em sua quantificação. 


  1. Eletroforese bidimensional 


A análise é realizada por meio da separação por carga elétrica e peso molecular das proteínas, permitindo a comparação de expressão proteica em diversas condições e cenários. Dessa forma, o perfil proteico de cepas resistentes aos medicamentos disponíveis atualmente (benznidazol e nifurtimox)podem revelar os mecanismos moleculares por trás da resistência. 


Considerações finais 


As técnicas da biologia molecular seguem revolucionando o estudo dos patógenos, principalmente do T. cruzi, por meio do melhor entendimento de sua bioquímica e mecanismos moleculares que garantem a sobrevivência do parasita, desde sua regulação gênica até o mecanismo de evasão do sistema imunológico.


A doença de Chagas é uma questão de saúde pública global. Assim, os estudos sobre a relação entre o parasita e a patologia tornam-se indispensáveis para o desenvolvimento de novos medicamentos que sejam eficazes em todas as fases da doença. 





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


[1] EÇA, Letícia et al. Chagas Disease: Advances, Gaps and Possibilities. Curieux Academic Journal, United States, ed. 45, p. 201-218, 9 dez. 2024. Disponível em: https://www.curieuxacademicjournal.com/_files/ugd/99711c_9849cc77ea7147b19dda2ff6cbe78b36.pdf . Acesso em: 16 dez. 2024. 


[2]  DEGRAVE, Wim. O genoma do Trypanosoma cruzi. Fio Cruz , [s. l.], 2017. Disponível em: https://chagas.fiocruz.br/parasita/biologia-molecular/ . Acesso em: 16 dez. 2024.


[3] MAPEADO o genoma do Schistosoma Mansoni, parasito causador da esquistossomose. Fio Cruz Minas, [s. l.], [201-]. Disponível em: https://www.cpqrr.fiocruz.br/pg/mapeado-o-genoma-do-schistosoma-mansoni-parasito-causador-da-esquistossomose/ . Acesso em: 16 dez. 2024.


[4] SILVA , Fernanda et al. Implications of genetic variability of Trypanosoma cruzi for the pathogenesis of Chagas disease. Scielo, [s. l.] , Outubro 2007. DOI https://doi.org/10.1590/S0102-311X2007001000002 . Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/FNThdzCHsGQGjRGqNrYTwGr/?lang=en . Acesso em: 16 dez. 2024.


[5] NETO, Rondom. Genômica Comparativa para Identificação de Fatores de Virulência no Trypanosoma cruzi. Universidade Federal de Minas Gerais, [s. l.], Novembro 2013. Disponível em: https://e3sys.com.br/ppg21/admin/files/tese/document_EZT5nhlz865X.PDF . Acesso em: 16 dez. 2024


[6] FERREIRA, Marcelo et al. Abordagens Genômicas, Transcriptômicas e Proteômicas Aplicadas ao Estudo de Leishmania spp. Scielo, [s. l.], [201-]. Disponível em: https://books.scielo.org/id/dgkx2/pdf/conceicao-9788575415689-27.pdf . Acesso em: 16 dez. 2024.



[8] ESQUISTOSSOMOSE (Bilharziose). Organização Mundial de Saúde , [s. l.], [201-?]. Disponível em: https://www.who.int/health-topics/schistosomiasis#tab=tab_1. Acesso em: 16 dez. 2024.




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