Por Italo Henrique, Luanna Souza e Ryan Santos
Quando pensamos em personalidades brasileiras que são reconhecidas internacionalmente pensamos logo em jogadores de futebol, atores e atrizes, mas não pensamos em cientistas, seja porque não conhecemos muitos ou até mesmo porque não somos ensinados a valorizar a ciência - sobretudo, a brasileira. No entanto, podemos dizer que, felizmente, temos diversos nomes de cientistas que são de “berço” brasileiro e que estão sendo reconhecidos mundo afora por suas pesquisas e por suas contribuições para o desenvolvimento científico e tecnológico global.
Por isso, temos a honra de poder dizer que entrevistamos um desses nomes para o Jovens Cientistas Brasil! A entrevistada é ninguém menos que a Dra. Suzana Herculano-Houzel: a neurocientista brasileira responsável por identificar quantos neurônios existem no cérebro humano. Suzana Herculano-Houzel é formada em Biologia com ênfase em genética pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), possui mestrado pela Case Western Reserve University nos EUA, doutorado pela Universidade de Paris VI na França e realizou pós-doutorado no Instituto Max Planck na Alemanha. Ela também é a primeira mulher editora-chefe do The Journal of Comparative Neurology, escritora de livros em português e inglês, colunista do Jornal Folha de São Paulo e pesquisadora e professora na Vanderbilt University (EUA). Foi a primeira brasileira a receber o Scholar Award da James S. McDonnell Foundation (JSMF) - instituição internacional que financia pesquisas que melhoram a vida da humanidade - e suas contribuições científicas são reconhecidas mundialmente tanto pela comunidade acadêmica quanto pelo público geral, sua palestra no Ted Talks possui quase um milhão de visualizações. Como resultado, Suzana é tida como uma das maiores neurocientistas da contemporaneidade em escala global.
Assim, nesta entrevista exclusiva concedida ao Jovens Cientistas Brasil, no dia 03 de junho de 2024, a neurocientista e professora contou sobre sua trajetória enquanto cientista, os desafios que enfrentou para ser reconhecida na comunidade científica mundial enquanto sul-americana, os resultados de suas pesquisas, novidades no campo da neurociência e conselhos para a nova geração de cientistas brasileiros.
Durante a sua trajetória, em qual momento a senhora descobriu que queria ser cientista? E como foi esse processo de “autodescoberta”, era um sonho de criança ou um sonho que surgiu já no ensino médio ou até mesmo na universidade?
“Olha, eu acho que foi meio natural. Porque eu era como vocês, eu tinha perguntas para tudo. Sempre gostei de resolver problemas e sempre gostei mais ainda de encontrar problemas (perguntas). Então, eu acho que isso foi essencialmente natural para mim, sem muitas “alternativas”. Eu lembro de quando era criança e de pensar sobre os efeitos especiais nos filmes - isso nos anos 70 quando os efeitos especiais eram práticos, feitos como miniaturas - e como esses eram muito interessantes, intrigantes e divertidos. E eu lembro de em algum momento pensar como deve ser legal trabalhar com isso, mas foi só um momento. Depois disso também tive a época da oceanografia, em que aquilo me intrigou até eu descobrir a biologia. Na verdade, eu até cheguei a pensar nisso (oceanografia) como uma opção profissional ou como uma variação da biologia, mas eu acho que essencialmente meu interesse já era a biologia. Mas só que eu desisti da oceanografia rapidinho quando eu descobri que eu ia ter que trabalhar embarcada e cercada de água por todos os lados e por todos os dias, eu pensei “não, isso não é pra mim não” [risos]. É, então, a oceanografia e a biologia marinha foi… Eu lembro que na época que eu prestei vestibular - no final dos anos 80) - era um dos “anos quentes” na biologia molecular e na engenharia genética e isso, claro, era um chamariz enorme. E a minha especialização foi mais na área de fisiologia, até que eu descobri que a gente tem cérebro [risos] e eu mudei de área quando eu já estava no doutorado, que foi quando eu entrei para a neurociência e aí eu não saí mais porque não falta assunto [risos].”
Considerando o seu ramo de especialização em neuroanatomia, como a senhora vê a contribuição dessa área para o avanço da neurociência e sua aplicação prática na compreensão das bases biológicas de doenças neurológicas e transtornos mentais? Quais são os desafios específicos enfrentados pelos pesquisadores nesse campo?
“A neuroanatomia é o que permite a gente entender exatamente do que um cérebro é feito, o que que é um cérebro. Isso em termos das partes, estruturas e que faz com o cérebro funcione do jeito que funciona. Isso é, a resposta está na neuroanatomia, que é esse estudo da estrutura do cérebro, das suas conexões, quais são essas partes e como elas se conectam umas com as outras. Então, você pode pensar na neuroanatomia especialmente como o que permite um mecânico entender como uma carro funciona, você não pode descrever o funcionamento do carro se você não entender antes quais são as partes e como as partes se encaixam umas nas outras, você não pode tratar um carro, não pode diagnosticar o problema do carro com o capô fechado, sem você ter a menor ideia do que que tem embaixo daquele capô. Você consegue ver que tem um problema, mas não tem a menor chance de entender o problema e muito menos de consertar ou, antes disso tudo, manter o carro funcionando, você não tem como fazer manutenção preventiva e manter o carro funcionando sem você entender do que o carro é feito e como que ele funciona, como que as partes se interconectam. Neuroanatomia é isso, só que o carro é o cérebro.”
“Olha, eu acho que na prática é a falta de charme da neuroanatomia comparada com outras áreas da neurociência que usam técnicas super avançadas, que usam métodos moleculares, que usam tudo o que tem de hightech. Por razões diferentes, por que tem o apelo, a atração dos cientistas novos que estão entrando no campo, por métodos e não por perguntas, esses é um dos problemas da ciência como um todo hoje em dia, mais assim da neurociência em particular, o atrativo enorme que são as técnicas, os métodos, mais do que as perguntas. Eu vejo jovens que desprezam o seu trabalho, não por qual é o interesse científico que eles tem, o que move a sua pesquisa, e sim por quais técnicas eles usam. Mas assim, por outro lado, você perguntou dos desafios, mas tem o atrativo moderno para neuroanatomia, que nos últimos anos surgiu uma tecnologia nova que tá revolucionando a neuroanatomia, um negócio fenomenal e que eu tenho a sorte de ter em meu laboratório, que é a microscopia de [como que chama no português? Light shift,] dimensão-luz. Acho que esse é o melhor termo, a adaptação do nome certo mesmo só de luz[risos], e o que isso faz é que ao invés de ver, você não precisa cortar o tecido antes de levar pro microscópio, você só precisa tornar esse tecido transparente, e aí o bloco, pode ser um bloquinho de cérebro ou um cérebro pequeno inteiro mesmo. O tecido transparente é atravessado, ele é iluminado por esse lençol de luz e com a câmera por cima você consegue visualizar um plano inteiro daquele tecido, e basta você mover o tecido pra cima e pra baixo, e você tem na sua frente, você vê acontecendo, você passeia em 3 dimensões pelo tecido. Oque isso quer dizer é que agora a gente consegue imagens tridimensionais da anatomia do cérebro, você consegue ver, combinando isso com a marcação, você consegue ver circuitos inteiros, você consegue acompanhar todo o percurso de um único neurônio, de onde ele começa e para onde ele vai, onde ele se bifurca. Sem falar que as imagens são maravilhosas, então tem todo um interesse novo, tem uma geração nova de cientistas ganhando interesse de novo por neuroanatomia.”
Figura 2 - Reprodução: Site Suzana Herculano-Houzel.
Dra. Herculano-Houzel, como a neurociência comparativa pode enriquecer nossa compreensão das bases biológicas subjacentes às patologias neurológicas e transtornos mentais? E de que maneira essas descobertas podem ser integradas na prática clínica para melhorar os tratamentos dessas patologias?
“Se você não tem um manual completo, que te explica sobre como o carro funciona. que é onde nós estamos fazendo na neurociência. E é onde estamos. Tem muita coisa que você pode aprender abrindo um capô de um carro, mas se esse é o único capô de carro que você já abriu na vida, você não vai ter muita oportunidade de aprender e entender os princípios dessa coisa, o que é, o que define um carro, do que é constituído ou como ele deixa de funcionar. Imagine que você nunca abriu um carro, ou seja, você não tem a menor ideia de como ele funciona, a neurociência comparada é exatamente equivalente a você pegar amostragem de todo tipo de carro diferente que passa na sua frente, você consegue pelo menos uma parte e leva para a sua garagem, o que te da utilidade de comparar esses vários carros e investigar o que eles têm em comum ou no que eles tem de diferente. Quando você compara isso com o que eles fazem em comum ou de diferente, você ganha essa informação sobre os princípios, sobre o que define um carro, o que torna um carro, ou da maneira que ele funciona. Então a neurociência comparada é esse princípio de você trazer vários tipos de carros diferentes para a sua garagem e analisá-los”
“As respostas incluem desde a compreensão das bases fisiológicas até as coisas muito práticas. Por exemplo: o meu trabalho recente mostra que o cérebro da gente funciona do limite da sua capacidade, a gente está o tempo todo usando 90% literalmente da quantidade de energia que o cérebro tem acesso. Isso é muito diferente da ideia anteriormente estabelecida, de que o acesso à energia do cérebro não é um problema, que é só os neurônios pedirem que ele receba nada disso. Quando você entende que o cérebro funciona no limite da sua capacidade, você entende que várias patologias podem ser consequências pura e simplesmente de pequenas reduções nessa entrega de energia. Então podemos trabalhar que o envelhecimento do cérebro pode ser resultado dessas pequenas diminuições dessas chegadas de energia, conforme as artérias vão entupindo ou perdendo os capilares. Isso é apenas um exemplo, imaginem a diabete, o infarto ou o acidente vascular encefálico, muito mais do que só um evento que destrói os vasos é um evento que diminui o acesso a esse bem, que é a chegada de oxigênio no cérebro.”
Sobre a sua pesquisa revolucionária sobre a quantidade de neurônios no cérebro humano, como foi questionar algo que era considerado um conhecimento “consolidado” na neurociência e conseguir comprovar que na verdade não era bem isso? E quais foram os desafios que a senhora encontrou na hora de divulgar os resultados dessa pesquisa - enquanto mulher brasileira e latino americana?
“Começa por você encontrar perguntas, para você identificar o que se sabe e o que “se acha que se sabe”, mas que não se sabe de fato, né. Porque é uma distinção extremamente importante de se fazer, que eu acho que quando a gente entra para pesquisa, quando a gente começa a se formar pesquisador é natural ter certa reverência pelo que está escrito nos livros: “há tá escrito aqui, tem que ser verdade, ou o professor me falou, tem que ser verdade. Há ta…”. Eu diria hoje que é assim: o que tá escrito nos livros é uma hipótese de trabalho e para você saber se é mais do que isso depende de você ir nos bastidores e fazer perguntas do tipo “como que a gente sabe isso?”, “a gente sabe mesmo?”, “quanto dessa frase aqui é fato ou interpretação de resultado ou é suposição, ou pior ainda, é intuição?”. No meu caso, no que tange de que os cérebros são feitos e de que os cérebros diferentes são feitos e quais são as regras dessas peças que constituem o que é o “carro” do cérebro, o que eu me dei conta fazendo essas perguntas - e as perguntas eram muito simples, eram simplesmente “como que a gente sabe que são 100 bilhões de neurônios e 10 vezes mais células gliais?”, por exemplo - é que a resposta é que a gente não sabe. Isso tudo era telefone sem fio misturado com intuições e achismo, e, por trás disso tudo era esse excesso de reverência ao que está escrito [nos livros acadêmicos]. “Há porque tá escrito deve ser verdade, há…”. Hoje, francamente me assusta pensar em todas as outras coisas que a gente considera “verdades” científicas… As da minha área eu conheço, agora todas as outras… È meio apavorante pensar quais são as outras verdades científicas que a gente repete por aí e considera na vida da gente como não eram pra ser.
[Em relação aos desafios] Eu acho que tinham duas grandes dificuldades, três na verdade. A primeira foi que eu tive que enfrentar todas as pessoas que vinham dizer; “Não, você tá errada, a gente já sabe que são 100 bilhões de neurônios e 10 vez mais células gliais. Você que prove que os seus números estão certos, porque a gente sempre soube que era assim”. E uma das consequências disso [da pesquisa sobre a quantidade de neurônios] é que o ser humano não é especial coisa nenhuma, é simplesmente um primata com um cérebro muito grande, né. Há, e vai convencer os meus colegas especialistas nisso, que cujas carreiras dependiam nisso de o cérebro humano é especial e diferente… Foi uma dificuldade. E a segunda foi que eu não era ninguém, eu não era “ cria” de ninguém, “cria científica” de ninguém, né. Então, não tinha ninguém para me defender ou para me dar credenciais, ninguém para “assinar em baixo”. E a terceira dificuldade era que eu tava fazendo isso tudo, essencialmente, transformando cérebros em “sopa” e para vários dos meus colegas parecia ou um acinte ou uma irresponsabilidade ou os dois. Porque eu tava “destruindo” tecidos valiosos. E a parte sobre ser mulher cientista e sul-americana, não sei dizer sobre ser mulher, não tenho como responder. Mas sobre ser sul-americana, acredito que entra na conta da falta de “credencial”, não só eu não era “cria científica” de ninguém como também não tinha vindo de nenhum laboratório famoso [na área]. E mais do que isso, eu não aprendi a ser neuroanatomista com ninguém. O meu doutorado não foi em neuroanatomia, foi em fisiologia, na neurofisiologia do sistema visual, quer dizer, nada a ver [com a neuroanatomia em específico]. Eu tinha credenciais fortes - aliás, super fortes - se eu tivesse escolhido continuar em neurofisiologia, eu era “cria” de um pesquisador alemão super, super, no maior instituto de pesquisa da Alemanha, que é o Instituto Max-Planck. Mas na hora que eu decidi seguir na neuroanatomia era por minha conta, era “cria” de ninguém. E fazendo isso sem sequer ter um laboratório, não tinha registro, não tinha histórico de produção, não tinha absolutamente nada, né. Quer dizer “nada” não é absolutamente verdade, mas o meu trabalho sobre o cérebro humano que é o que a gente tá falando [a pesquisa sobre a quantidade de neurônios] foi o meu quinto artigo, talvez, usando o método de transformar o cérebro em “sopa”. Então, os desafios eram esses, até claro, ter chegado no ponto em que os cientistas estabelecidos desdenham ao contrário, não é “não pode tá certo, não pode ser verdade” é “é claro que é verdade, que novidade tem nisso?”. E é “que novidade tem isso isso?” porque agora que eu já mostrei que é assim a “coisa”.
Tem uma parte que eu acho que ajuda, que é um lado de personalidade com as pessoas, é que eu sou meio sem noção [risos], porque isso ajuda em muitas coisas. Porque se os números são esses, os números são esses [86 bilhões de neurônios], você pode brigar comigo o quanto você quiser, os números estão aqui, os números são esses.”
Dada sua experiência e visão sobre a pesquisa em neurociência no Brasil, você ainda vê a falta de incentivos como um problema significativo para os neurocientistas no país? Como você acha que essa falta de incentivo impacta não apenas a pesquisa em si, mas também a disseminação do conhecimento científico, a formação de novos pesquisadores e a colaboração internacional?
“Assim..é, quando eu saí do Brasil em 2016 a gente já notava um problema, que era os jovens que vinham pro laboratório, pro laboratórios dos meus colegas no mesmo corredor. Começou a haver muita desistência, muitos jovens que começavam universidade, entravam com laboratórios, começavam a fazer pesquisa e tendo condições de fazer o trabalho, tendo resultados e tudo mais, ainda assim em questão de semanas, e às vezes 2 semanas, 3 semanas eles diziam "isso não é pra mim, eu não quero essa vida", por uma combinação de vários fatores, as dificuldades, a falta de estrutura, você está condenado- a palavra é essa mesmo- a quando você se forma na universidade, você ter (indecifrável), você não pode ter sua própria vida, muito menos formar uma família, manter uma família com uma bolsa de pesquisa, que é o nome que tem o dinheiro que um jovem pesquisador recém formado no Brasil recebe. Não é um salário, vai comparar com qualquer engenheiro recém formado, com economista recém formado, com administrador que pega o diploma e vai receber um salário de verdade, ter um emprego de verdade. O pesquisador no Brasil não é considerado assim, você tem que viver com essa "alcunha" de estudante ainda e que se dê pir sortudo por não ter que pagar para continuar estudando pra receber um doutorado, quando a verdade é que não existe ciência feita- é raríssimo- ciência feita sem estudantes de doutorado, são os jovens cientistas que são as pessoas que de fato carregam a ciência nas costas, são as pessoas que de fato fazem o trabalho. E no Brasil não existe qualquer sombra de reconhecimento disso.
Aí a gente entra num problema maior ainda que é a falta de recursos pra fazer pesquisa no Brasil, pra você ter colaboradores internacionais primeiro você tem que se mostrar a altura, você precisa ter produção que justifique, você ganhar um colaborador quer dizer: você está solicitando um recurso extremamente escasso, de um pesquisador que é o tempo, e esse tempo precisa valer a pena. Então quando você quer colaborar com um pesquisador você precisa mostrar que você tem uma ideia muito boa, você tem que ter alguma coisa que faça o tempo daquele investimento daquele pesquisador valer a pena. E como você faz isso se a pesquisa no Brasil não tem condição financeira de existir né, de continuar existindo? Então é uma pena, eu acho que o problema vem de mais fundo, que é financiar, pesquisa é um investimento que requer tempo, qualquer projeto de pesquisa leva mais de um mandato de político pra dar resultados. E esses resultados não são garantidos, então a melhor caso de retorno pra um investidor, para um político( esse investidor é o político, com políticas públicas ) é o resultado positivo, que é suficiente de uma vez só, um um projeto de pesquisa, pra te dar- te trazer um conhecimento novo, que por si só já é transformador em alguma medida. [Pausa] Não é a norma, não vou dizer que é raro, mas não é a norma. Então o estigma vem daí, investir em ciência não elege ninguém, investir em ciência é investir em infraestrutura, em processos e não em coisas. Em processos que vão te render produtos daqui a 10 a 20 anos, investir em ciência é construir, e construir não deixa ninguém bem na foto imediatamente, construir muito pelo contrário é -os prefeitos e governadores que constroem são imediatamente detestados porque abrem buracos na cidade, atrasando com o tráfego-. Então a gente sabe , as dificuldades são imediatas, os retornos são pro próximo, provavelmente né. O retorno, claro, é pra sociedade como um todo, mas é preciso ter essa visão de futuro, então investir em ciência é investir nesse futuro que provavelmente é um outro que vai colher.”
Quais desafios você identifica na pesquisa neurocientífica contemporânea, particularmente no Brasil e no cenário global? Além disso, poderia compartilhar sua visão sobre como pesquisadores em início de carreira podem se inserir e contribuir significativamente para o progresso da neurociência?
“Para quem tem acesso aos recursos financeiros e condições eu acho que o desafio maior no momento é escapar dessa sensação que são as tecnologias modernas, que faz cada vez mais os cientistas aplicarem essas técnicas, porque elas estão disponíveis ao invés de usarem as ferramentas disponíveis, quaisquer que elas sejam, para responder perguntas. Eu acho que a ciência de uma maneira geral hoje está sofrendo de uma concorrência desleal entre essas tecnologias atraentes e que fazem o laboratório parecer competitivo, porque ele usa tecnologias de ponta, mesmo que ele não tenha interesse por identificar quais são as perguntas de fato. E essa dificuldade de identificar perguntas vem de uma crise na ciência que é a falta de novas teorias. Isso é uma coisa que a gente vê nos EUA. Eu vejo na minha universidade e no meu trabalho. Que é a desvalorização do trabalho conceitual, do que forma, do que testa, do que forma teorias novas. É um trabalho que muitas vezes pode ser feito com poucos recursos, mas isso quer dizer que é um trabalho que não usa tecnologias novas em evolução, não precisam de muitos engenheiros, e as universidades nos EUA não gostam disso. Os reitores das universidades querem pesquisas de ponta, para eles esses tipos de pesquisa precisam de milhões de dólares e é um investimento, porque parte desses milhões de dólares vão para a universidade. É aqui que nós vemos os sinais de uma crise que é inerente à ciência por esse lado dos próprios cientistas valorizarem métodos e tecnologias do que a perguntas. Mas é uma crise que é piorada, que gosta de ciência cara. No Brasil, quem faz ciência barata é quem se destaca. Foi o meu caso. A minha sorte foi o que eu comecei a fazer, transformando cérebros em sopa era ridiculamente barato. Então eu tive a vantagem de começar no Brasil de dedicar o meu tempo a questões e teorias que resolviam com pouco dinheiro. Nos EUA é diferente, além de fazer pesquisa, os pesquisadores têm que ser catadores de recursos.”
“O jovem pesquisador brasileiro precisa de muita garra e vontade. Precisa olhar lá para frente, porque o retorno não vai ser imediato. Porque o sistema brasileiro não tem condições de oferecer este retorno nem na forma de salário quanto de emprego. O pesquisador precisa entender que a ciência é uma empreitada global. Então estar no Brasil é uma circunstância, mas você tem que fazer o que pode com as circunstâncias que têm. Temos que aprender a pensar, aprender a identificar perguntas, procurar respostas, aprender como se procura as respostas e isso é algo que pode ser feito pelo estudante brasileiro. Mesmo porque a gente tá no ponto onde tem muitas informações que estão disponíveis com acesso a internet. A CAPS foi o órgão a pleitear alguns arquivos de pesquisa mediante a rede universitária.”
Quais os campos de estudo da neurociência ou da biologia comparativa a senhora está atualmente estudando e quais estão na sua lista para futuras pesquisas?
“Eu estou estudando a vascularização do cérebro. Desde que a gente descobriu que o cérebro funciona no limite da sua capacidade, o que aliás, já teve a ver com a gente descobrir que a distribuição dos capilares do cérebro não é relacionada com a distribuição de neurônios e nem nada disso, o meu foco agora é entender como que a vascularização do cérebro forma, do que define que tamanho tem o cérebro tem e o cérebro de espécies diferentes. Mas também isso está inserido em um contexto biológico maior, que é o que define o tamanho do corpo, ou seja, a pergunta maior para mim agora é: como que acontece aquela célula inicial, que é um zigoto, que tem essencialmente o mesmo tamanho da de um camundongo e um elefante… Como é que aquela uma célula [zigoto] se transforma em um bichinho pequeno ou em um “bichão” desse tamanho [de grande porte], como um elefante? Onde é que tá escrito? Onde é que tá o sinal? De onde vem essa informação? Ou ao contrário, de onde vem essa limitação que define que vai ter esse tamanho?
E parte disso começa com justamente com o trabalho de voltar às bases, de buscar dados que já existem na literatura [científica] e reinterpretar esse “tudo” dentro dessa nova teoria que a gente propôs dois anos atrás, que essa teoria do funcionamento limitado pela oferta, são termos econômicos [de energia] mesmo. A ideia tem a intenção de que o cérebro é uma economia baseada em demanda, ou seja, o cérebro é uma economia limitada pela oferta [de energia] e você só pode fazer o que a oferta propõe. E o que eu estou trabalhando agora é testar essa teoria que inverte o argumento de como as coisas acontecem [no cérebro] e se isso explica de uma maneira melhor e bem mais simples como que organismos têm tamanhos diferentes de cérebro, e, que usam quantidades diferentes de energia.
[Sobre o que gostaria de estudar em pesquisas futuras] Eu adoraria poder estudar o desenvolvimento comparado [do cérebro] de um camundongo com o de um elefante e o de vários outros animais no caminho. Mas a dificuldade é, obviamente, conseguir elefantes, bebês elefantes e embriões de elefantes para estudar, por isso tem que ser “oportunista” [e esperar], porque, claro, que ninguém quer matar um bebê elefante sem necessidade para poder estudar o cérebro. Então, aí a gente tem outros problemas, ao invés dos elefantes é mais “acessível” você usar, por exemplo, cérebros de vacas ou porcos, que existem em quantidades enormes e que são criados para o abate na nossa cultura e tudo mais. Enfim, eu adoraria poder estudar o desenvolvimento comparado de cérebros de elefantes com outros animais, porém não vou poder estudar o desenvolvimento do cérebro dos elefantes, mas vou ficar muito feliz de ter a oportunidade de estudar porcos e vacas.”
Figura 3 - Imagem: neurocientista Suzana Herculano-Houzel em entrevista ao programa Roda Viva em 2013.
Sobre a fadiga cerebral devido ao excesso de estímulos, como a senhora enxerga os efeitos desse fenômeno na saúde cerebral, especialmente em relação ao desenvolvimento cognitivo das futuras gerações e ao bem-estar das pessoas mais velhas? Além disso, considerando que, por definição, esses estímulos só irão aumentar, como a senhora acha que esse ambiente cada vez mais saturado de informações e distrações pode afetar as habilidades cognitivas e emocionais das futuras gerações? Existem estratégias eficazes para mitigar esses efeitos negativos e proteger a saúde cerebral das crianças, jovens e idosos?
“Olha a fadiga cerebral é um assunto pouco conhecido, mas que agora com essa nossa nova teoria sobre o funcionamento do cérebro no limite da capacidade, dessa oferta de sangue e oxigênio, uma ideia a ser testada diz respeito a fadiga cerebral, é que essa fadiga é o estado em que o cérebro já usou as poucas reservas locais que ele tem, que ele tem de fato! [Pausa] Tá escrito no meu primeiro livro que o cérebro não tem reserva, e do jeito que se pensava de fato não tem, o cérebro não tem "gordurinha" guardada, mas o cérebro tem glicogênio guardado dentro dos astrócitos na rede local. O acesso a ele glicogênio é local, o que quer dizer que quando você insiste em um tipo de atividade pir muito tempo, essa reserva de glicogênio é usada e esvaziada. A proposta é que a experiência da fadiga mental é esse estado, é a sensação que a gente tem nesse estado, onde a gente entende que tem uma coisa a fazer, a gente começa a fazer essa coisa mas não encontra mais uma capacidade que tinha antes. E como que isso se resolve? Com você dando tempo e oportunidade dessas reservas se refazerem, a maneira mais garantida, a maneira mais rápida e eficiente é você dormir, mas ficar quieto, parar de fazer o que você tava fazendo e descansar- pode até ser enquanto você faz outra coisa, porque enquanto você tá fazendo outra coisa você vai usar essas reservas de glicogênio de outras partes do seu cérebro e deixa aquela que tava fazendo matemática, que tava pensando, que tava escrevendo, você deixa aquela quieta que ela se recupera.
[PAUSA] Então a ideia é essa, fadiga mental bem justamente desse contexto de funcionamento limitado pela capacidade de oferta.
Olha, o primeiro efeito é maravilhoso, eu acho que essas crianças nunca se desenvolveram tão rápido e se tornaram tão espertas e tão capazes em tão pouco tempo. E isso é graças às oportunidades, que a gente tem de ter, de se dar problemas pra resolver, que é isso que por exemplo, quando você tá aprendendo um videogame novo por exemplo, você tá se dando oportunidades fabulosas de descobrir, de se expor a problemas e ter a chance de descobrir como lidar com eles, como criar soluções ativamente a sua maneira.
O problema vem depois, o problema tá no uso que a gente- já instruído, já treinado, já adulto- faz, escolhe fazer, ou faz sem pensar muito a respeito, dessa super-exposição, dessa possibilidade de superexposição. Eu acho que isso é um problema que sempre exitiu, só que hoje em dia é muito mais intenso, por causa do crescimento da quantidade de informação a qual a gente é exposto é exponencial- é por definição:exponencial. Isso quer dizer que daqui a 2 gerações vão reclamar mais ainda do que a gente já reclama, isso se ainda houver humanidade até lá[risos]. O problema é o que a gente escolhe fazer com isso, se você se permite expor,se você se permite receber dados novos, informação nova. E se tá ocupado porque você pode, ou se você quer de fato, esse é um tipo de educação que agora é fundamental, por que agora, mais do que antes a gente tá chegando naquele limite onde todos os minutos do dia da gente podem estar ocupados se a gente quiser, antes não era assim, por mais livros que você tivesse, por mais estudos que você fizesse, tinha que fazer muita força pra ocupar cada minuto do seu dia. Hoje em dia não, você tem o celular no seu bolso," e, sobrou um minuto e eu tenho que esperar" sai o telefone do bolso e você vai ver o que fulano tá fazendo, jogar um joguinho e tudo mais. Isso é terrível, porque acaba com a capacidade, com essa oportunidade que a gente se dava de ficar à toa, de olhar ao redor, de dar atenção pros outros, dar atenção pra gente mesmo. O negócio é que tempo continua sendo limitado, o tempo que você usa pra fazer uma coisa, pra olhar no seu telefone, é tempo que você não usa pra fazer qualquer outra coisa.”
Em sua visão, qual é o papel da neurociência na moldagem das políticas de saúde pública e como essa interseção pode influenciar tanto o sistema de saúde quanto a pesquisa neurocientífica em níveis nacional e internacional?
“Eu não vejo um papel em particular dessa neurociência nas políticas públicas. Eu acho que a política pública é uma questão de investimento na infraestrutura e na soberania para uma nação inteira. Isso depende de você ter o interesse em valorizar a ciência. Começa com os administradores que querem reconhecer que o conhecimento gerado e mantido pela ciência é fundamental para uma nação. A necessidade em infraestrutura, de termos os recursos humanos; pessoas bem treinadas, de reconhecer que um cientista não se forma em quatro anos, por baixo uns dez anos para você ter uma pessoa capaz de pensar, fazer e construir conhecimento independentemente. O cientista é um guardião do conhecimento, sendo assim ele traz para que exista uma geração futura. Isso é fundamental para a soberania do país e para as políticas de maneira geral.”
Quais são as tecnologias emergentes mais promissoras na neurociência atualmente? Como essas inovações têm potencial para transformar nossa compreensão do cérebro e revolucionar os tratamentos para doenças neurológicas e transtornos mentais?
A gente tá num ponto de automatização, da microscopia, como automatização de sequenciamento. De tudo que pode ser sequenciado, sequenciamento de DNA, de RNA, de proteínas. Agora se fala em metaboloma, que é a mensuração, o mapeamento dos vários produtos, vários intermediários do metabolismo dentro dessa célula, o que é extremamente eficaz. Essa automatização é extremamente eficaz, a gente gera ciência, gera dados novos a uma velocidade absurda hoje em dia. O problema é que não tem ninguém, quase ninguém[risos], interessado, ou às vezes-infelizmente-, capaz, com embasamento teórico, com conhecimento amplo necessário para usar esses dados, para fazer sentido de estar sendo produzido. Deixa eu dar um exemplo, a gente tem 3 trabalhos agora que estamos mandando para publicação, que são foram feitos no meu laboratório usando dados de um instituto enorme nos Estados Unidos, que é o instituto Allen(Allen Institute for Brain Science) de pesquisa do cérebro, onde os pesquisadores fazem sobre isso, eles geram dados, eles não têm a menor idéia do que estão gerando ou pra que vai servir, qual a importância que isso vai ter. E se ninguém fizer como a gente, pois se ninguém tiver as perguntas que precisam desses tipos de dados para serem respondidas, esses dados não servem pra nada. Então é importante ter alguém cuja missão é fazer esses dados? Claro que é, o importante mesmo é ter um equilíbrio. Pois atrai muito dinheiro também, e as pessoas esquecem de fazer o resto do trabalho.
Então eu acho que nesse momento na ciência há esse desequilíbrio enorme a favor de tecnologia que gera dados, contra a interpretação e formação de novas teorias. Por que não vai ser a inteligência artificial, não vai ser a automatização que vai gerar novas teorias, para gerar teorias novas, pra interpretar dados, para avaliar teorias, você precisa de um corpo de conhecimento enorme, e mais do que isso você precisa identificar as perguntas que são importantes. A inteligência artificial não faz isso, não tem algoritmo capaz de fazer isso, no dia que tiver o ser humano se tornou obsoleto. Mesma coisa, a gente precisa de pesquisadores capazes de interpretar e aplicar esses dados, esses conhecimentos. E é aí que entra a pesquisa básica, eu entendo a preocupação com a aplicação, com melhorar a saúde, com tratar doenças neurológicas. Mas tudo isso começa com você entender que tem dentro do diabo do carro[risos], e como que as partes do carro funcionam, e do que que elas são feitas e que que determina elas serem feitas assim- e se for diferente, funciona também ou não? Isso tudo é pesquisa básica, e pesquisa básica começa com a pergunta fundamental que é "como é que isso funciona? E o que tem por debaixo do capô, porque se ninguém perguntar isso, você pode fazer que você quiser com o carro, pode ser o carro mais chique do mundo, você vai continuar não sabendo como ele funciona, você não vai ter a capacidade de fazer algo a respeito.
Sobre chutes de novas teorias, tecnologias e pesquisas, isso a gente não sabe, essa é a graça da pesquisa bem como da própria vida, a gente não sabe o que vem depois, a gente sabe o que estamos fazendo agora. Mas é como a história da evolução e da bolsa de valores, a gente conta de trás pra frente, depois que aconteceu a gente olha pra trás e tenta explicar como que aquilo aconteceu. Mas a graça é justamente essa, imagina? Seria muito sem graça olhar um tabuleiro e o caminho ser um só e já estar rodo desenhadinho, você iria pensar "porquê eu vou perder tempo jogando se eu já sei o que a acontece no final?"
Ainda bem que a gente não sabe né?[risos]
Considerando a complexidade da neurociência, como a senhora acredita que a comunicação e a divulgação científica podem ser otimizadas para aumentar a conscientização pública sobre questões neurológicas e promover uma sociedade mais informada sobre saúde mental?
“No final das contas se a gente quer uma sociedade que quer investimento em pesquisa ela precisa saber exigir isso dos seus políticos e para isso acontecer é preciso ter essa informação, esse valor. E quem constrói esse valor na sociedade é o próprio cientista. Tem que ter o próprio cientista. Eu acho fundamental termos cientistas envolvidos com divulgação científica, envolvidos em promover, em disseminar, em promover a valorização do seu próprio trabalho.”
Dra. Suzana, a senhora é uma grande inspiração para muitos cientistas, principalmente, para aqueles que estão iniciando no mundo da ciência e na academia. Por isso, qual conselho, acadêmico ou para a vida, a senhora dá para a nova geração de cientistas brasileiros?
“Olha, o meu conselho é o que eu aprendi que pra mim é a definição mais útil e prática de inteligência, que é a gente se manter flexível e encontrar maneiras para fazer isso é fundamental para um jovem cientista. Se manter flexível para um jovem cientista quer dizer várias coisas na prática, que é você se manter informado, você ler absolutamente tudo que você puder, mas, claro, usar o seu tempo de maneira inteligente, de maneira que abra horizontes e que não fique lá simplesmente repetindo a mesma coisa no telefone. E abrir portas, porque se manter flexível é manter portas abertas, e mais, abrir portas abertas para você mesmo. E isso para um jovem cientista no Brasil quer dizer usar os recursos que você tem da maneira que você pode e se formar fazendo o melhor possível com o que você tem, mas manter a cabeça aberta para buscar oportunidades onde quer que elas estejam. Se tiver que ir pro estrangeiro, vai buscar oportunidades no estrangeiro e vai buscar essas oportunidades se mantendo flexível e isso o CNPq pelo menos ajuda agora, não impondo mais que o cientista que saí [do Brasil] para fazer doutorado com recursos do dinheiro brasileiro tenha que voltar “obrigado” a qualquer custo, o que era pela minha definição uma burrice fenomenal, para os dois lados, né. Mas principalmente para o estudante que ganhava formação e capacitação e aí voltava pro Brasil para ficar “à toa” [sem oportunidades], era “suícidio do profissional” e péssimo uso de recursos da parte do próprio governo. Mas enfim, minha recomendação é: faça de tudo para se manter flexível.”
A entrevista foi conduzida pelos redatores Italo Henrique e Luanna Souza e contou com a colaboração do também redator Ryan Santos.