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Brenda Roberta

A construção de um cérebro leitor e seus circuitos neurais



Os seres humanos não nasceram para ler. A aquisição do letramento é uma das façanhas epigenéticas mais importantes do Homo sapiens. Até onde sabemos, nenhuma outra espécie realizou essa façanha, e o ato de ler acrescentou um circuito inteiramente novo ao repertório do nosso cérebro de hominídeos. Por sua vez, o longo processo evolutivo de aprender a ler bem e em profundidade mudou nada menos que a estrutura das conexões desses circuitos, e isso fez com que mudassem as conexões do cérebro, com a consequência de transformar a natureza do pensamento humano. 


O neurocientista David Eagleman escreveu em um ensaio de 2011 que células do cérebro são conectadas entre si numa rede tão espantosamente complexa que desbanca a linguagem humana e exige novas extensões da matemática, e, por si só, tais conexões em um único centímetro cúbico de tecido cerebral são tantas quantas as estrelas da nossa galáxia Via Láctea (EAGLEMAN, p. 1, 2011).


É a capacidade de realizar esse número desconcertante de conexões que permite ao nosso cérebro ir além de suas funções originais para formar um circuito para a leitura completamente novo. Ora, um novo circuito era necessário porque o ato de ler não é algo natural, muito menos inato (WOLF, p. 26, 2019). 


Tudo começa com o princípio da plasticidade dentro de limites no projeto do cérebro onde, para tanto, ele cria um novo conjunto de caminhos, conectando e às vezes realocando componentes de suas estruturas básicas mais antigas a novas funções (WOLF, p. 27, 2019). Todavia, a plasticidade também subjaz ao motivo pelo qual o circuito do cérebro leitor é inerentemente maleável e influenciado por aquilo que se lê (tanto o sistema de escrita particular como o conteúdo), como ele lê (a mídia particular, o impresso ou a tela e seus efeitos sobre o modo de ler) e como é formado através dos métodos de instrução (WOLF, p. 29, 2019). Ou seja, o ponto crucial desta análise deve-se em pontuar que a plasticidade do cérebro nos permite formar não apenas circuitos cada vez mais sofisticados e expandidos, mas também  circuitos cada vez menos sofisticados, dependendo dos fatores ambientais. 


Além deste princípio, para que a leitura aconteça, deve haver automatismo na velocidade do som para que as redes neurais em nível local – isto é, em regiões estruturais como o córtex visual – permita a formação de conexões igualmente rápidas entre expansões estruturais do cérebro (WOLF, p. 29, 2019). Portanto, sempre que designamos uma única palavra que seja, estamos ativando redes inteiras de grupos neuronais específicos, que correspondem a redes de grupos específicos de células articulatório-motoras. Tudo isso com uma precisão de milissegundos. 


Essencialmente, a combinação desses mecanismos forma a base daquilo que alguns de nós jamais suspeitariam: um circuito de leitura que incorpora inputs de dois hemisférios, quatro lobos em cada hemisfério (frontal, temporal, parietal e occipital) e todas as cinco camadas do cérebro – desde o telencéfalo na posição mais alta, e o diencéfalo, adjacente abaixo, passando pelas camadas intermediárias do mesencéfalo, até chegar aos níveis mais baixos, do metencéfalo e do mielencéfalo.


Quando o cérebro interpreta uma sentença, o que ocorre não é um simples exercício de juntar letras e posteriormente palavras. Segundo o pesquisador Andy Clark, quando lemos palavras em sentenças ou em um texto mais longo, entramos em um território cognitivo novo, em que a predição vai ao encontro da percepção (CLARK, p. 181 - 214, 2013). A qualidade com que lemos qualquer sentença ou texto, depende, porém, da nossa capacidade de refletir sobre ela.


Quando refletimos que “sentença” significa, literalmente, “um modo de pensar” [...] nos damos conta de que uma sentença é ao mesmo tempo a oportunidade e o limite do pensamento – aquilo com que temos que pensar, e aquilo em que temos que pensar. É, além disso, um pensamento passível de ser sentido [...]. É um padrão de significação de sentimentos. (BERRY, p. 53, 1983).



O que lemos, como lemos e por que lemos são fatores de mudanças do modo pelo qual pensamos onde, no curso de seis milênios, tornou-se o fator catalisador de transformação do desenvolvimento nos indivíduos e nas culturas letradas, mas não apenas isso. O ato de ler engloba uma extraordinária complexidade cerebral, incorporando, como nenhuma outra função, a capacidade quase milagrosa do cérebro de ir além de suas capacidades originais, geneticamente programadas, como são os casos da visão e a linguagem (WOLF, p. 10, 2019).


Assim, a origem não natural, e sim cultural do letramento, significa que os jovens leitores não possuem um programa de base genética para desenvolver esses circuitos. Sobre o tema, a neurocientista Maryanne Wolf pontua:


Os circuitos do cérebro leitor são formados e desenvolvidos por fatores tanto naturais como ambientais, incluindo a mídia em que a capacidade de ler é adquirida e  desenvolvida. Cada mídia de leitura favorece certos processos cognitivos em detrimento de outros. Traduzindo: o jovem leitor tanto pode desenvolver todos os múltiplos processos de leitura profunda que estão atualmente corporificados no cérebro experiente, completamente elaborado; ou o cérebro leitor iniciante pode sofrer um “curto-circuito” em seu desenvolvimento; ou pode adquirir redes completamente novas em circuitos diferentes. Haverá profundas diferenças em como lemos e em como pensamos, dependendo dos processos que dominam a formação do circuito jovem de leitura das crianças. (WOLF, p. 16, 2019).


Ou seja, haveria então uma profunda diferença entre os circuitos “desbloqueados” através de uma leitura ativa e entre uma leitura passiva. O mesmo serve para o meio pelo qual tal leitura está sendo realizada – forma física ou digital.


Diante disso, ficam os questionamentos: não poderia acontecer que a combinação da leitura em formatos digitais com a imersão diária numa variedade de experiências digitais – desde as mídias sociais até os jogos virtuais – impeça a formação dos processos cognitivos mais demorados, como o pensamento crítico, a reflexão pessoal, a imaginação e a empatia que fazem parte da leitura profunda? Não é possível que a mistura de distrações que estimulam continuamente a atenção das crianças, jovens e adultos ao acesso imediato a múltiplas fontes de informação acabem dando a classe leitora menos incentivos, seja para construírem seus próprios repertórios de conhecimentos, seja para pensarem criticamente por si sós?


O fato, é que em sua essência original, através da leitura e do desenvolvimento cognitivo que ela implica, nós, seres humanos, aprimoramos algo que nos condiciona a uma base de comparação e compreensão de percepções. Não necessariamente faladas oralmente, mas, parafraseando Proust, através de um fértil milagre da comunicação realizado na solidão.






REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


[1] BERRY, Wendell. Standing by Words, Berkeley, Counterpoint, 1983, pág. 53.


[2] CLARK, Andy. Whatever Next? Predictive Brains, Situated Agents, and the Future of Cognitive Science. Behavioral and Brain Sciences 36, n° 3, junho de 2013, pág. 181-214.


[3] EAGLEMAN, David. Incognito: The Secret Lives of the Brain. New York, Viking Press, 2011, pág. 1.


[4] PROUST, Marcel. On Reading, ed. J. Autret, trad. para o inglês de W. Buford. New York: Macmillan, 1971 (publicado originalmente em 1906), pág. 48.


[5] WOLF, Maryanne. O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era. Editora Contexto, 2019.



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